tEXTS
Light of September, 2022
Galeria do Paço/CdC Paço, u. Minho, Braga
Tiago Madaleno: a pintura pensa o amor duradouro
Marta Mestre, 2022
Para Tiago Madaleno a teoria e a prática formam uma soma paradoxal e conflituante que sublinha a natureza especulativa do seu trabalho. Na maioria dos seus projetos convoca-se, de forma muito evidente, o confronto entre a ideia da forma e a forma da ideia. Neste sentido, são várias as suas exposições que têm como ponto de partida um “problema” teórico ou filosófico, em relação ao qual se desenvolve uma estratégia material que agudiza esse conflito: performance, vídeo, instalação, pintura ou uma combinação expansiva e multimodal destes vários meios.
Por exemplo, em 2017, na exposição Clepsidra, realizada no Museu de Serralves (Porto), Tiago Madaleno perguntava se um corpo pode produzir imagens fotográficas, mostrando que sim: músculos e vontades produzem aparições. Madaleno construiu para tal um engenho mecânico que ele mesmo carregava às costas, numa caminhada até o mar. Nessa performance havia um misto de utopia e de fim, de possibilidade e de impossibilidade, porque naquela máquina havia mesmo produção de imagens, deixando em aberto a pergunta, a origem e destino das mesmas: o corpo produz imagens? Ou é o engenho que as produz?
Anos antes, no projeto Do sopro para o caule (2015), o desafio era outro: o de fazer coincidir o crescimento do caule de um girassol com o gesto de soprar. E, em Noite de Núpcias (2019), na Appleton - Associação Cultural (Lisboa), Tiago Madaleno punha a hipótese absurda de separar uma cabeça do seu corpo, sendo que essa cabeça seria a do filósofo René Descartes. De certa forma, Madaleno recolocava a certeza de que o sono da razão produz sempre os seus monstros.
A arte como constructo ou máquina é uma ideia que atravessa o trabalho de Tiago Madaleno, como se vê. Uma “máquina do mundo” já não “etérea e elemental” como ordem geométrica de tudo, mas como lugar de onde brota a multiplicação do caos como sentido. Um mundo sempre “desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, e com as suas linhas de fuga”, como propuseram Deleuze e Guattari, e a cujo carácter fragmentado Madaleno responde.
Como se combinam, nesta nova exposição Luz de Setembro, a hipótese especulativa com a estratégia material? Como funcionam as peças dessa engrenagem que une filosofia e materialidade? E, por outro lado, o que permanece intraduzível, inexplicável e lacunar?
O ponto de partida é a ideia de amor duradouro. Não o amor ardente e erótico românticos, mas “o amor que inventa uma forma diferente de durar ao longo da vida”, nas palavras do filósofo Alain Badiou. Mas, note-se: Tiago Madaleno faz este tipo de amor ser pensado pela pintura sendo que o seu projeto é todo ele determinado a partir das condições de possibilidade dessa disciplina. Uma pintura que cuida e é, por isso, um pensamento que constrói o amor e o faz existir no pintar.
Vemos assim que a questão “o que pintar” persegue a questão de “como pensar o pintar”, da mesma forma que o pensamento persegue a matéria. Existe uma retórica nessa equação, sem que isso ponha de parte uma erótica. O amor para ser pensado como “acontecimento duradouro”, parece dizer-nos Madaleno, deverá sê-lo a partir da pintura. Das suas possibilidades plásticas, sensoriais e reflexivas.
O que pinta e como pinta Tiago Madaleno em Luz de Setembro?
As cenas desdobram-se em oito telas, abrem umas nas outras, num rodapé contínuo que as persegue e agrega. Agrega a sua dispersão natural em serem imagens autónomas, assim como o amor que agrega e prolifera. A luz lúgubre de uma fogueira invisível aquece as cenas interiores (será a iluminação interna da pintura?), dá-lhes calor e movimento. Diante do conjunto, estamos suspensos entre a ordem do que vemos e a apreensão de que tudo pode mover-se novamente. Em contínua aparição, em contínua cinematografia. E recua-se e avança-se por entre o espaço da representação. É o ponto extático da pintura, o seu ponto extremo, quase a ser outra coisa (quase imagem em movimento, quase sonoridade, canção).
O fogo (invisível) é o centro e símbolo da casa, a luz amarela do fogo que transforma os pretos em acastanhados. Os mesmos castanhos-escuros das paisagens filosóficas de Giorgio de Chirico, a mesma (in)quietude doméstica dos milagres na pintura de ex-votos, os mesmos planos oblíquos da pintura primitiva medieval. A luz outonal do fogo que distorce as sombras, tornando-as fantasmas.
Como estratégia discursiva da pintura, veja-se, por exemplo, como as sombras aparecem nesta exposição como
indícios dos corpos, o que permite a Tiago Madaleno sugerir o enigma dos corpos reais. Enquanto sombras, as personagens são “subtraídas” e evadem-se na arquitectura (fundem-se nos ângulos da casa) com a mesma discrição e recolhimento que geralmente atribuímos aos cuidadores na sua ação de cuidar.
Por outro lado, note-se como Luz de Setembro tira partido do próprio lugar onde se encontra: as arcadas do Paço de Braga. As arcadas delimitam um espaço de dentro e de fora, como uma narrativa. Aliás, a pintura é sempre uma grande preocupação para evitar a imobilidade total, e Tiago Madaleno explora esse afastamento que a arquitetura impõe, ao mesmo tempo que nos podemos movimentar no espaço e ser um pouco actores.
Do lado de fora das arcadas, o artista instalou uma tela de menores dimensões, com uma imagem de radiografia. “A ideia para a imagem vem do filme Amour de Michael Haneke. Nele há um momento em que se mostra como se deve levantar um corpo débil, incapaz de se mover sozinho, de uma cadeira. Na cena, o cuidador colocava os seus joelhos contra os joelhos da pessoa que necessitava de cuidados e, apoiando o peso dela no seu corpo, criava uma espécie de alavanca que permitia levantá-la”, diz-nos Tiago Madaleno. Esta imagem intitula-se Alçado e é a única representação de um corpo físico na exposição. As restantes oito imagens intitulam-se Quarto, Canto, Papel de parede, Túnel, Janela, Interior, Porta, Superfície. Todas provenientes de um campo lexical da arquitetura… Juntas essas palavras edificam.
Erigir o compromisso amoroso, parece dizer-nos Tiago Madaleno, pode ser um acto de pintura. Face a isso e fiel ao rigor do seu projeto, Tiago Madaleno especula sobre a possibilidade de “fazer com que esta casa cresça”, “uma tela por ano”. Daqui a 10 anos seriam 18 telas, e assim sucessivamente. Podemos ler este desígnio como sendo o compromisso de um amor que dura extrapolado para o compromisso com a própria arte. Um compromisso, sabemos, não menos contingente e transitório que a melancolia outonal do título da exposição. //